quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Carta ao vizinho

Vizinho, bom dia!
Não te conheço, ou melhor, conheço-te apenas de relance ao nos encontrarmos todas as manhãs, proferindo um educado "bom dia" um para o outro. Sei que tua casa passa o dia vazia, fechada, sem ninguém. Pelo menos sei disso na hora do almoço, único horário em que estou em casa antes do fim do dia. Ouço-te, depois das seis: teus passos, o salto alto de tua esposa, o choro de teu filho menor (já vi pela janela que são dois). Não, não é isso que me incomoda. De fato, não há incômodo algum, à exceção dos churrascos eventuais - não pela fumaça ou pelo cheiro da carne, mas pelas músicas de gosto muito duvidoso. Nada que a porta fechada e o ar condicionado ligado não resolvam. O que me intriga é o fato de teus móveis serem arrastados tarde da noite. Nove, dez horas e os escutamos - os móveis - de um lado para outro, e mais um tanto, e mais um pouco. Impossível não ouvir. Tanto quanto é impossível não se perguntar: acaso limpam a casa a esta hora? Mudam a decoração diariamente? Instituíram novo hábito noturno? Têm alguma mania ou superstição? Não consigo não ficar devaneando sobre isto, ao mesmo tempo em que penso o quanto em nosso tempo moramos lado a lado e não nos falamos, o quanto - não apenas nós, mas todos, em geral - somos tão próximos e tão desconhecidos, o quanto a nossa vida reservada nos mantém apenas conosco mesmos, sem muitas relações, nenhuma troca, nenhuma conversa, sem ver nossos filhos brincando juntos pelo condomínio e sem explicações para os móveis itinerantes e as músicas irritantes.

2 comentários:

Anônimo disse...

Que interessante o relato: "só ouço seus ruídos".
Ruídos de arrastar de móveis.
Pensei: A vida permite ouvir os ruídos dos vizinhos que se arrastam como móveis mudados de lugar todos os dias. Móveis mudam de lugar, a vida sempre na mesma!.Ruídos não são falas mas podem falar de coisas e pessoas que se arrastam.
Por serem gerados por humanos devem ter significado. Eis algo a ser descoberto

Papi

Anônimo disse...

"Tudo dança hospedado numa casa em mudança". (Leminski) Talvez essa seja a resposta.

Inquietude, movimentos internos, sem horizonte...
Que encontrem o norte!

Mamy